terça-feira, 28 de fevereiro de 2017




Depus a máscara e vi-me ao espelho. —
Era a criança de há quantos anos.
Não tinha mudado nada...
É essa a vantagem de saber tirar a máscara.
É-se sempre a criança,
O passado que foi
A criança.
Depus a máscara e tornei a pô-la.
Assim é melhor,
Assim sou a máscara.
E volto à personalidade como a um terminus de linha.


Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa,
Depus a máscara e vi-me ao espelho







Dai-me outro verão nem que seja
de rastos, um verão
onde sinta o rastejar
do silêncio,
a secura do silêncio,
a lâmina acerada do silêncio.
Dai-me outro verão nem que fique
à mercê da sede.
Para mais uma canção.


Eugénio de Andrade, Silêncio, in Rente ao Dizer








quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017







Eis aqui um mistério natural,
aqui onde reina o silêncio,
meu senhor. O que se ouve é o prado.
O amor ressoa 
como um verso antigo.
Menos que o silêncio, ressoa,
mais do que os grilos.
Ninguém lhe ocupará o lugar, o assento.
Cujo canta comigo, tal como eu,
com a boca fechada.
Sereno como eu desperta,
faz mexer as coisas,
fazerem ruído. O silêncio sabe
por que se cala; faz falar e cala-se.
Mistério natural da hora dourada.

Irene Gruss, Silêncio






terça-feira, 21 de fevereiro de 2017





Os dias vêm
e vão
e isso é tudo o que fazem

como páginas de uma novela
que esqueces
ao passar
à seguinte

ou como quando vás
no comboio
olhando pela janela
e apenas te interessa 
a paisagem.

Karmelo C. Iribarren, Ultimamente



segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017



Quero mais do que nunca

Sonhar
Habitar um espaço que existe
Entre presença e ausência
Ausência
Serenamente exaltante
Presença
Nao minha
Quase nada

Quero regressar ao sonho

Espaço
Que se me abre apenas
Quando sei abrir-me
Abandonar-me

À circular

Linha extasiada do horizonte


Alberto de Lacerda, Sonhar








domingo, 19 de fevereiro de 2017





Minha vocação é o silêncio. Foi meu pai que me explicou: tenho inclinação para não falar, um talento para apurar silêncios. Escrevo bem, silêncios, no plural. Sim, porque não há um único silêncio. E todo o silêncio é música em estado de gravidez. 


Mia Couto, Jerusalem








Jóias que imensa madrugada
De estrelas na ilha alegre
Do riquechó contemplo as conchas
Celestes a cintilar
São conchas algas são prodígios
Do mar que os deuses cravejaram
Assimetricamente musicalmente no firmamento

Alberto de Lacerda





sábado, 18 de fevereiro de 2017






Como é belo seu rosto matutino
Sua plácida sombra quando anda 

Lembra florestas e lembra o mar 
O mar o sol a pique sobre o mar 

Não tive amigo assim na minha infância 
Não é isso que busco quando o vejo 
Alheio como a brisa 
Não busco nada 
Sei apenas que passa quando passa 
Seu rosto matutino 
Um som de queda de água 
Uma promessa inumana 
Uma ilha uma ilha 
Que só vento habita 
E os pássaros azuis 

Alberto de Lacerda, in Exílio










sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017




A minha intenção 
Se a tivesse 
Era interromper de vez em quando as vossas falas 
E fazer-vos voltar a cabeça silenciosos 
Na única direcção em que os versos existem 

Alberto de Lacerda, 

If

in Palácio








E só a sombra nunca esmorecesse.

Inês Dias




quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017





Os pássaros
estabelecem diálogos
que ninguém entende
felizmente

Como tudo o que é puro
de raiz
o que os pássaros dizem
não se traduz


Alberto de Lacerda, Os Pássaros
in Átrio





segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017






Pedem tanto a quem ama: pedem
o amor. Ainda pedem 
a solidão e a loucura.

Herberto Helder, Lugar (poema II)





domingo, 12 de fevereiro de 2017






Não restará na noite uma estrela.
Não restará a noite.
Eu morrerei e comigo a suma
do intolerável universo.
Apagarei as pirâmides, as medalhas,
os continentes e as caras.
Apagarei a acumulação do passado.
Farei a história em pó, o pó em pó.
Estou a olhar para o último poente.
Ouço o último pássaro.
Lego o nada a ninguém.


Jorge Luis Borges









                                            O teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas...
 Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso...
                                            E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas
                                  Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraíso...


                                                       Fernando Pessoa, Hora Absurda










Quem viu tudo esvaziar-se,
sabe quase
o que tudo tem dentro.



Antonio Porchia






sábado, 11 de fevereiro de 2017





Há momentos em que meu corpo me aparece
como uma casa abandonada.


E eu não sei se fui eu
ou o meu fantasma
quem nele entrou
por engano.


Estela Figueroa, Meu corpo











Na minha noite, infelizmente tão curta
o vento está prestes a encontrar-se com as folhas
das árvores
na minha noite, tão breve, e plena de uma angústia devastadora
ouve
ouves o sussurro das sombras?
esta felicidade é-me desconhecida
estou habituada ao desespero.
(...)
o vento levar-nos-á
o vento levar-nos-á.



Forough Farrokhza, O vento levar-nos-á