quarta-feira, 29 de novembro de 2017




a sabedoria da criança é não saber que morre 

a criança morre na adolescência 
Se foste criança diz-me a cor do teu país 
Eu te digo que o meu era da cor do bibe 
e tinha o tamanho de um pau de giz 
Naquele tempo tudo acontecia pela primeira vez 
Ainda hoje trago os cheiros no nariz 
Senhor que a minha vida seja permitir a infância 
embora nunca mais eu saiba como ela se diz 

Ruy Belo, in Homem de Palavra[s]










terça-feira, 28 de novembro de 2017




Hereditárias de sol,
elas desabrocham, as palavras, 
um doce fruto escorrendo pela voz,
o rumor leve, adolescente,

o lento fiar do vento
nas suas conchas naufragadas. 


João de Mancelos




sábado, 25 de novembro de 2017




7

Eu não sou eu nem sou o outro, 
Sou qualquer coisa de intermédio: 
    Pilar da ponte de tédio 
    Que vai de mim para o Outro. 

Mário de Sá-Carneiro



quinta-feira, 23 de novembro de 2017





Também elas envelheceram, as escadas,
também, como eu, desabitadas.
Anoiteceu, ao longe afastam-se passos, provavelmente os meus,
e, à nossa volta, os nossos corpos desvanecem-se como terras estrangeiras


Manuel António Pina



domingo, 19 de novembro de 2017





Às vezes regressa 

na imóvel calma do dia a recordação 
daquele viver absorto, na luz assombrada. 

Cesare Pavese




sexta-feira, 10 de novembro de 2017





Meus são os dedos que em tumulto

modelam capitéis
de sombra e arestas

Mas oculto na brisa
és Tu quem percorre o poema
despertando as aves
e dando nome aos peixes


José Tolentino de Mendonça







quinta-feira, 9 de novembro de 2017




Quietos fazemos as grandes viagens
só a alma convive com as paragens
estranhas

José Tolentino de Mendonça









terça-feira, 7 de novembro de 2017





No duelo com certas noites
um coração sai sempre perdedor

Tua voz luzia pelo porto
quase a ponto de perder-se

Não avances tão depressa, minha noite


José Tolentino de Mendonça
in Uma casa no Machico





segunda-feira, 6 de novembro de 2017




a porta
queria que batesses
tomasses um por um os meus refúgios
estes dedos
inquietos na ignorância
do fogo


José Tolentino de Mendonça
in Os dias de Job



domingo, 5 de novembro de 2017





Eu era quase um anjo
e escrevia relatórios
precisos
acerca do silêncio



José Tolentino de Mendonça
in A infância de Herberto Helder





sábado, 4 de novembro de 2017






Aparentes senhores de um barco abandonado, 
nós olhamos, sem ver, a longínqua miragem... 
Aonde iremos ter? — Com frutos e pecado, 
se justifica, enflora, a secreta viagem! 

Agora sei que és tu quem me fora indicada. 
O resto passa, passa... alheio aos meus sentidos. 
— Desfeitos num rochedo ou salvos na enseada, 
a eternidade é nossa, em madeira esculpidos! 

David Mourão-Ferreira, in A Secreta Viagem





sexta-feira, 3 de novembro de 2017





Na minha juventude antes de ter saído
da casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que já tinha lido


Ruy Bello