quarta-feira, 26 de abril de 2017






Mal toquei na flor da esteva,
logo ela se desfez,
frágil como névoas de Verão.

A corola branca
desconjuntou-se em pétalas dispersas
como flocos de neve fora de tempo
pousando com cautela sobre a terra.

Passou assim a haver
no campo um astro a menos.

Mas passou a haver também
um odor a esteva nos meus dedos.

Ficou ela por ela.


A.M.Pires Cabral

 Flor de Esteva-I, in Gaveta do Fundo





segunda-feira, 17 de abril de 2017





Os pássaros nascem na ponta das árvores 
As árvores que eu vejo em vez de fruto dão pássaros 
Os pássaros são o fruto mais vivo das árvores 
Os pássaros começam onde as árvores acabam 
Os pássaros fazem cantar as árvores 
Ao chegar aos pássaros as árvores engrossam movimentam-se 
deixam o reino vegetal para passar a pertencer ao reino animal 
Como pássaros poisam as folhas na terra 
quando o outono desce veladamente sobre os campos 
Gostaria de dizer que os pássaros emanam das árvores 
mas deixo essa forma de dizer ao romancista 
é complicada e não se dá bem na poesia 
não foi ainda isolada da filosofia 
Eu amo as árvores principalmente as que dão pássaros 
Quem é que lá os pendura nos ramos? 
De quem é a mão a inúmera mão? 
Eu passo e muda-se-me o coração

Ruy Belo



Algumas proposições com pássaros e árvores que o poeta remata com uma referência ao coração




domingo, 16 de abril de 2017




Deixa que te diga como o tempo ficou

pesado desde o último voo em torno do mistério… 

Procuro agora respostas no frasco cheio das pedras

que trouxe do sapal 
Pequenas lisas  de cores suaves 
Elas permanecem no seu ofício de in-quietude 

guardam o silêncio prendem a memória dos dias felizes
mas não me dizem o que fazer comigo 
 com as minhas mãos sem préstimo 
 com o meu corpo cansado com as palavras 
que se escondem perdido o jeito
de inventar sorrisos no oceano adormecido 
nos teus olhos 
Deixa que te diga como o tempo ficou pesado 
desde a derradeira tempestade 
quando as águas vieram inundar tudo em redor
com o seu rasto de lágrimas 
E nem o sol soube
secá-las no meu peito dorido 
Mas não receies
é talvez só a morte disfarçada de leveza 
que me acena ao longe discreta e cúmplice
com a mais diáfana e enternecedora nuvem…


                                    Mário Contumélias, Nuvem, in Sobre pequenas coisas









sábado, 15 de abril de 2017



Sou um homem do Inverno 
Gosto da neblina da atmosfera pardacenta 
da luz baça do dia
 Gosto das temperaturas do frio 
do vento cortante 
Até da chuva e de submergir
os pés nas poças de água
 Gosto do calor
que a noite pede – um copo de vinho partilhado 
uma manta à lareira da conversa
um metermo-nos na cama corpo a corpo
nus como se fossemos jovens
O Inverno é triste
 mas tem uma maneira doce de ficar 
E inventou a Primavera
Gosto da Primavera nas flores 
na erva rasteira tão verdinha 
Nas pedras grávidas de sol 
nas migrações das aves 
Sou um homem do Inverno
 porque em nenhum outro ciclo
 a terra está tão presente 
Molhada da chuva
exala um cheiro que nos invade
 vai ao mais fundo de nós 
Transforma-nos
O Inverno é o cinzelador do tempo
 o mediador entre a morte e a vida
Ai Inverno não demores a vir

Mário Contumélias, Inverno

in Sobre pequenas coisas





quinta-feira, 13 de abril de 2017





A solidão da viajante
na beira da cama
no quarto de hotel
as malas por abrir
os sapatos altos
caídos pelo chão
como frutos maduros
Ela lê um menu
um programa
um horário de comboios
tão sozinha
no quarto
como qualquer viajante
recém-chegada
 a um mundo hostil
a uma cidade sem nome.

Cristina Peri Rossi
Quarto de hotel




terça-feira, 11 de abril de 2017




A poesia é tudo o que nasceu com asas a cantar.


Lawrence Ferlinghetti, A poesia como arte insurgente















segunda-feira, 10 de abril de 2017





Dizem que a morte é solitária
que morremos sempre sós
mesmo rodeados por aqueles que nos amam
mas tu chamaste-me
e eu não estava:
não te fechei os olhos
não te beijei a fronte
não te ajudei a passar
para o outro lado
estava longe
longe de ti que me iluminaste
me nutriste
educaste minhas asas.
Não cumpri o rito
estava longe
longe
e é esse o soluço que me arrebata em ondas
em cúpulas
em grutas
e não sai
persegue-me em sonhos
afoga-me.
Perdoa-me/liberta-me
preciso de uivar
rufar tambores
um golpe na cerviz
um estampido
para arrancar de vez este soluço
e não invocar-te mais
em desolados
versos.



Claribel Alegria, Rito incumprido




domingo, 9 de abril de 2017




E agora os campos são verdos autênticos
que é preciso colher vocábulo a vocábulo
dos despojos da colisão de um erro
contra o portão ondulado
do destino

Paulos da Costa Domingos
A Céu Aberto





sábado, 8 de abril de 2017

sexta-feira, 7 de abril de 2017





As pontes não são o rio.
As casas existem nas margens coalhadas.
Agora eu penso na solidão do amor.
Penso que é o ar, as vozes quase inexistentes no ar,
o que acompanha o amor.
Acompanha o amor algum peixe subtil.


Heberto Helder
As barcas gritam sobre as águas
in Poemacto






quinta-feira, 6 de abril de 2017





Durante a primavera inteira aprendo os trevos,
a água sobrenatural, o leve e abstracto correr do espaço 
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega dos meus lábios, 
sinto que me falta um girassol,
uma pedra, uma ave, qualquer coisa extraordinária.


Porque não sei como dizer-te sem milagres que 
dentro de mim é o sol, o fruto, a criança, a água, o leite, a mãe, o amor, 
que te procuram.


Herberto Helder
Não sei como dizer




quarta-feira, 5 de abril de 2017






Tentamos regular
com açudes de orações
o curso da tristeza
mudamos de cadeira
e levamos a noite
a dizer oxalá
como se a palavra
praticasse anestesia.



José Miguel Silva
 Nocturno, in Ulisses já não mora aqui





terça-feira, 4 de abril de 2017




A vida é uma viagem que uns fazem em caixeiros-viajantes, outros em navios em lua de mel, e outros, como eu, em tourists. Eu atravesso a vida para olhar para ela. Tudo é paisagem para mim, como para o bom tourist — campos, cidades, casas, fábricas, luzes, bares, mulheres, dores, alegrias, dúvidas, guerras (...). Quero, para aproveitar a minha viagem, sentir o maior número de coisas no mais pequeno espaço de tempo possível. Sentir tudo de todas as maneiras, amar tudo de todas as formas, tocar e ver coisas e não lhes pegar, passar por elas e não olhar para trás — parece-me o único destino digno dum poeta.


Álvaro de Campos, Carta a Caeiro, heterónimos de Fernando Pessoa
in Álvaro de Campos, Poemas Completos de Alberto Caeiro




segunda-feira, 3 de abril de 2017




...tudo pronto para que a luz estremeça:
o terror da beleza, isso, o terror da beleza delicadíssima...

Herberto Helder





sábado, 1 de abril de 2017






"...Pelo seu fulgor. Pelo seu perfume. Pela riqueza inesperada das suas sugestões. Com um pequeno gesto os poetas soltam o seu pólen que, levado pelas palavras vai eternamente fecundando os arcos da beleza que erguem o universo..." 
 

Manuel Hermínio Monteiro, in Rosa do Mundo: 2001 Poemas para o Futuro