quinta-feira, 10 de dezembro de 2020


 

A questão, no fundo, é apenas esta: há momentos
em que a vida nos parece quase bela,
escolhos onde embatem as mais íntimas certezas.

Talvez adormeçamos lado a lado,
de costas para a morte, e haja corsários ao fundo,
um mar de gelo protegendo-nos da noite.


Manuel de Freitas




quarta-feira, 2 de dezembro de 2020


 

Se eu voltar algum dia
será pelo canto dos pássaros.
Não pelas árvores que hão-de partir comigo
ou irão depois visitar-me no Outono,
não pelos rios que, por baixo da terra,
continuarão a falar-nos com suas vozes mais nítidas.
Se no fim regressar, corpóreo ou incorpóreo,
levitando em mim mesmo,
embora nada possa já ouvir na ausência,
sei que minha voz estará ao lado de seus coros,
e voltarei, se hei-de voltar, por eles;
o que foi vida em mim não deixará de celebrar-se,
e eu habitarei o mais inocente dos seus cantos.


Eugenio Montejo






segunda-feira, 30 de novembro de 2020




 Sós, sempre sós.

Nas planícies, nos montes, nas florestas,

A crescer e a florir sem consciência.

Virtude vegetal viver a sós

E entretanto dar flores.



António Gedeão





domingo, 15 de novembro de 2020


 

As barcas gritam sobre as águas.
Eu respiro nas quilhas.
Atravesso o amor, respirando.
Como se o pensamento se rompesse com as estrelas
brutas. Encosto a cara às barcas doces.
Barcas maciças que gemem
com as pontas da água.


Herberto Helder




sexta-feira, 13 de novembro de 2020


 

                      Eu quando olho pra o Douro vejo fundamentalmente um presépio

                          de socalcos lindíssimos a subir as encostas, coroadas por uma mata,

                         que vão cair sobre um rio cheio de salgueiros.



                                                           Gonçalo Ribeiro Telles








quarta-feira, 11 de novembro de 2020


 

O nevoeiro começa a adensar-se quando João Bernardo sai da auto-estrada. Reduz a velocidade, menos por precaução do que pelo prazer de rodar entre as brumas molhadas que velam árvores, jardins, aldeias e póvoas, igrejas e capelas, casai de beira de estrada e mansões resguardadas em parques, cada presença trasmudada pelo leve, leitoso, mágico envólucro, acrescida de um cândido mistério ficcional.


Helena Marques 





terça-feira, 10 de novembro de 2020


 

A vida não é a que nós vivemos mas a que nós recordamos quando queremos contá-la.


Gabriel Garcia Marquez




segunda-feira, 9 de novembro de 2020


 

Era uma pedra feminina
muito perto de uma pedra bem masculina
onde
a todo o comprimento do mastro
batiam os dentes das aves.
E o que restava das mãos mais antigas
pedia ainda dinamite
talheres avulso
mastodontes inviolados
alguns jovens em renda para bordar as estradas
hastes primaveris correndo o risco de se tornarem de bronze
acenando
a uma paisagem
hexagonal
maior que a soma de todas as janelas.


Artur do Cruzeiro Seixas





sábado, 31 de outubro de 2020


 

                                       Um poema é a projecção de uma ideia em palavras 
através da emoção. A emoção não é a base da poesia
                                       é tão somente o meio de que a ideia se serve para 
                                       se reduzir a palavras.


Ricardo Reis, heterónimo de Fernando Pessoa





terça-feira, 27 de outubro de 2020




                                     Uma ilha à distância é como um cirro de cinza

ou um veleiro, uma vaga sonbra  no horizonte.

Vista de dentro, é do tamanho do mundo.


Sant´Ana Dionísio





segunda-feira, 26 de outubro de 2020

domingo, 25 de outubro de 2020



                                          Amar uma ilha é um verbo com dois tempos,
           o breve e o longo, o da passagem e o da permanência. 
                                         E cada tempo tem o seu segredo e o seu tesouro.


Helena Marques




sexta-feira, 23 de outubro de 2020



És Tu quem nos espera

Nas esquinas da cidade
E ergue lampiões de aviso
mal o dia se veste
de sombra

Teu é o nome que dizemos
se o vento nos fere de temor
e o nosso olhar oscila
pela solidão dos abismos

Por Ti é que lançamos as sementes
e esperamos o fruto das searas
que se estendem
nas colinas

Por Ti a nossa face se descobre
em alegria
e os nossos olhos parecem feitos
de risos

É verdade que recolhes nossos dias
quando é outono
mas a Tua palavra
é o fio de prata
que guia as folhas
por entre o vento



José Tolentino Mendonça






terça-feira, 20 de outubro de 2020


 

 Já não vivia numa ilha, mas trazia sempre a ilha dentro de mim, ninguém se liberta de uma ilha.


Helena Marques




 

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

sábado, 17 de outubro de 2020


 




A água cai em cordões verticais e vivos, cantando.

Cria-se uma nova, ou muito velha, espécie de solidão em que o súbito 
gosto da pureza se mistura ao temor.

A água é uma delicadíssima e exaltante matéria.

Talvez os homens desejassem estender-lhe as mãos voltando-as de 
todos os lados para ficarem bem molhadas.

Uma água vasta e nua, uma água maternal.


Herberto Helder





sexta-feira, 16 de outubro de 2020

quinta-feira, 15 de outubro de 2020


 

  Aparentes senhores de um barco abandonado,

nós olhamos, sem ver, a longíqua miragem...

Aonde iremos ter?- Com frutos e pecado,

se justifica, enflora, a secreta viagem!

Agora sei que és tu quem me fora indicada.

O resto passa, passa... alheio aos meus sentidos.

-Desfeitos num rochedo ou salvos na ensseada,

a eternidade é nossa, em madeira esculpidos!



David Mourão Ferreira






quarta-feira, 14 de outubro de 2020


 




Respirando o casco das palavras.
Sua esteira embatente.
Com a cara para o ar nas gotas, nas estrelas.
Colocado no ranger doloroso dos remos,
Dos lemes das palavras.


Herberto Hélder






terça-feira, 13 de outubro de 2020

segunda-feira, 12 de outubro de 2020


 

Nestas ervas
só o silêncio
se pode deitar

Ninguém ama
tanto o silêncio
- raízes


Jorge Sousa Braga




domingo, 11 de outubro de 2020


 

Ao longe
um canto de mulher
parece embalar a vida.

A voz, não o silêncio,
é a nudez das palavras.


Hugo Mujica




sábado, 10 de outubro de 2020


 

O silêncio é como se fosse água.
Daquela água pura da montanha
que se bebe directamente
pelo coração.


Jorge Sousa Braga






sábado, 26 de setembro de 2020


 

e quando eu me levanto
para dar dois passos,
vendo as minhas pegadas
marcadas na areia,
penso que elas mentem,
que eu já não piso assim
sei lá desde quando;
são pegadas de outro
que sobrevive no meu pisado,
muito menos eloquente.
Tu, em troca, que me vês
inteiro, indivisível,
sabes melhor que ninguém como eu sou mortal,
como minhas pegadas na areia me descrevem
e como aquilo que eu sou se plasma nelas,
sabes melhor que ninguém como não me escutar.


Fabio Morábito






terça-feira, 22 de setembro de 2020

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

 

Um homem tem que viver,
e tu vê lá não te fiques
- um homem tem que viver
com um pé na Primavera.
Tem que viver
cheio de luz. Saber
um dia com uma saudade burra
dizer adeus a tudo isto.
Um homem (um barco) até ao fim da noite
cantará coisas, irá nadando
por dentro da sua alegria.

 

Fernando Assis Pacheco


 


 

sábado, 1 de agosto de 2020




Tudo era claro:
céu, lábios, areias.
O mar estava perto,
fremente de espumas.
Corpos ou ondas:
iam, vinham, iam,
dóceis, leves -- só
ritmo e brancura.
Felizes, cantam;
serenos, dormem;
despertos, amam,
exaltam o silêncio.
Tudo era claro,
jovem, alado.
O mar estava perto.
Puríssimo. Doirado.


Eugénio de Andrade




quinta-feira, 30 de julho de 2020





Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!

Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa



quarta-feira, 29 de julho de 2020




Se fosses luz serias a mais bela
de quantas há no mundo: - a luz do dia!


António Botto




terça-feira, 21 de julho de 2020




Este céu passará e então
teu riso descerá dos montes pelos rios
até desaguar no nosso coração.


Ruy Belo




sábado, 18 de julho de 2020




A Régua
assemelha-se
       a um pensamento
com
       suces-
              sivas ideias
prestes a entrarem
nos lábios
do rio.


António Cabral




quinta-feira, 16 de julho de 2020




Deixa entrar a luz,
deixa-a entrar,

que se acomode,
que abra a mala;

dá-lhe de comer,
não a ponhas fora;

deixa-a andar pela casa.




Eduardo Dalter