E eu mostro-lhes só o meu silêncio como troféu de guerra
Elas entendem
apesar das suas ironias
Uma indica-me posições de tai-chi para o baço
Outra dá-me na boca
umas colheres de um chá negro com sabor a lacrau
Outra aplica-me queimaduras no plexo solar e nas mãos
com um estranho charuto chinês
Outra deita-me no sofá e percorre-me com as lentes
Outra diz-me que respire fundo, até cá baixo, mais abaixo,
e não faltará quem me ofereça uma oração, uma cerveja
Pouco a pouco vou vindo à tona
Então elas fazem planos para mudar de quarto
de emprego
de cidade
de planeta
quanto antes
Não estão para me ver voltar novamente
como um cachorro abandonado.
Gonzalo Fragui, De como os antigos amores
quinta-feira, 25 de maio de 2017
Quero ignorado, e calmo
Por ignorado, e próprio
Por calmo, encher meus dias
De não querer mais deles.
Aos que a riqueza toca
O ouro irrita a pele.
Aos que a fama bafeja
Embacia-se a vida.
Aos que a felicidade
É sol, virá a noite.
Mas ao que nada espera
Tudo que vem é grato.
Fernando Pessoa
quarta-feira, 24 de maio de 2017
Recomeça... Se puderes, Sem angústia e sem pressa. E os passos que deres, Nesse caminho duro Do futuro, Dá-os em liberdade. Enquanto não alcançares Não descanses. De nenhum fruto queiras só metade.
Miguel Torga, Recomeça, Diário XIII
Não perturbes a paz que me foi dada. Ouvir de novo a tua voz seria matar a sede com água salgada.
Miguel Torga, Suspensão
terça-feira, 23 de maio de 2017
Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada —
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...
Álvaro de Campos
Se te despedires, fá-lo de mansinho,
nada de brusquidão.
Não me digas: ‘Vamos estar um tempo sem nos ver’.
O que é o tempo?, responder-te-ia.
Uma ponte entre o adeus e o reencontro?
Se te despedires, que teu adeus me conforte,
que seja o bálsamo de minhas feridas,
que teus lábios me digam: ‘até depois’,
‘fazes já parte da minha vida’,
que eu possa sentir que em todo o momento
nossas mãos se buscarão na sala de espera
e falaremos de amores, de como passa o tempo,
de quão interessante te acho.
Gloria Bosch, A despedida
segunda-feira, 22 de maio de 2017
Amanhã virá.
domingo, 21 de maio de 2017
O vento chamei,
confiei-lhe meu desejo de ser.
Alejandra Pizarnik, Peregrinação
Duvida da luz dos astros,
De que o sol tenha calor,
Duvida até da verdade,
Mas confia no meu amor.
William Shakespeare
sábado, 20 de maio de 2017
a porta está fechada na palavra porta
para sempre
Manuel Antonio Pina,
Como se desenha uma casa
No entanto, ao escrever-te para marcar
um encontro contigo, sei que é irremediável o que temos
para dizer um ao outro: a confissão mais exacta, que
é também a mais absurda, de um sentimento; e, por
trás disso, a certeza de que o mundo há-de ser outro no dia
seguinte, como se o amor, de facto, pudesse mudar as cores
do céu, do mar, da terra, e do próprio dia em que nos vamos
encontrar, que há-de ser um dia azul, de verão, em que
o vento poderá soprar do norte, como se fosse daí
que viessem, nesta altura, as coisas mais precisas,
que são as nossas: o verde das folhas e o amarelo
das pétalas, o vermelho do sol e o branco dos muros.
Nuno Júdice, Carta (Esboço)
quinta-feira, 18 de maio de 2017
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus.
Eugénio de Andrade
quarta-feira, 17 de maio de 2017
Foi à beira do mar, à meia-noite.
Estava Deus lá,
e a areia e tu
e o mar e eu e a lua
éramos Deus. E adorei.
Antonio Gala
terça-feira, 16 de maio de 2017
Não procures a noite por não suportares o dia.
Vergílio Ferreira, Aparição
segunda-feira, 15 de maio de 2017
E ainda que tivesse o dom de profecia e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda tivesse uma fé capaz de mover montanhas, se não tiver amor, nada serei.
Paulo, 1 Corintios 13:2
domingo, 14 de maio de 2017
Tem uma cor pálida. O teu nome. Como um fruto numa tarde de outono.
Vergílio Ferreira, Para sempre
Eu não sei de pássaros,
nem conheço a história do fogo.
Mas creio que devia ter asas a minha solidão.
Alejandra Pizarnick, Carência
sexta-feira, 12 de maio de 2017
A tua vida não é apenas tua. Ela é de si e dos outros.
Vergílio Ferreira
Entre uma infinidade de hipóteses de não teres nascido, saiu-te a sorte de teres nascido. Se te tivesse saído a "sorte grande", haveria gente que se admiraria de isso te ter acontecido. Tu mesmo dirias talvez que parecia um "sonho", que era inacreditável, que ainda não tinhas caído em ti do assombro. Mas essa sorte foi a de um número entre dezenas de milhares ou mesmo centenas. Mas teres nascido é ter-te saído a sorte entre biliões e biliões e biliões de hipóteses negativas. Saiu-te o número inscrito numa areia do universo. Tens pois o privilégio incrível de veres o sol, as flores, os animais. De ouvires as aves e o vento. De. E todavia, como esqueces isso tão facilmente. Breve tudo se apagará em silêncio. Breve a oportunidade de estares vivo cessou. Provavelmente ninguém mais saberá que exististe. E mesmo dos que o souberem, não se saberá um dia. Num momento não muito longínquo morrerá o último homem sobre a face da Terra. Esse é, aliás, o momento da tua própria morte, porque tu és o primeiro e o último homem que nasceu. Tudo é rápido e contingente e miraculoso. Tudo é rápido e sem consequências. A única consequência és tu e a vida que viveres. Não a desperdices. Não inutilizes a fabulosa sorte que te calhou. Vê. Ouve. Pára, escuta e olha, que a morte vai a passar. E terás cumprido ao menos, para com o universo, um pouco do teu dever de gratidão
Vergílio Ferreira, Pensar
e faço-te estes versos
de sal e esquecimento.
Rui Knopfli,
Ilha Dourada
quinta-feira, 11 de maio de 2017
Não vejo o teu coração, deixei de ver a lua.
E o céu desta cidade não me vence.
Armando Silva Carvalho
quarta-feira, 10 de maio de 2017
A poesia é tudo o que nasceu com asas a cantar.
Lawrence Ferlinghetti,
A poesia como arte insurgente
terça-feira, 9 de maio de 2017
O amor é uma noite a que se chega só
José Tolentino Mendonça
domingo, 7 de maio de 2017
No meu peito uma palavra
de pedra veio cair.
Que nada! Pronta eu estava.
Sou capaz de resistir.
Hoje há muito que fazer:
devo matar a lembrança,
à alma dar pedra, substância,
e reaprender a viver.
Ou... O verão, farfalhando,
entra pela gelosia.
Venho há muito suspeitando
luz diurna, casa vazia.
Anna Akhmatova, Sentença
Há um grande amor que se solta quando a presença física desaparece. Há um grande amor que espera por esse vazio para se mostrar. É como a voz dela dentro de mim: só comecei a ouvi-la no silêncio que caiu à minha volta quando ela se foi embora. Durante uns tempos — que nunca mais acabavam — doía-me que eu não pudesse falar com ela. Mas doía-me ainda mais ela não poder falar comigo.
Miguel Esteves Cardoso
O riso das mães, in Público, 2017-05-07
Antes de morrer ela confidenciou-me "as mães, por muito boas que sejam, acabam sempre por deixar mal os filhos."... As mães só fingem que nos deixam ficar mal. A verdade — que também é triste — é que não nos largam. Porque nós não as deixamos. Nem podemos.