terça-feira, 7 de fevereiro de 2017






Recomeça…

Se puderes,
Sem angústia e sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro,
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado,

Vai colhendo
Ilusões sucessivas no pomar
E vendo
Acordado,
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças.


Miguel Torga, Diário XIII





domingo, 5 de fevereiro de 2017





É sempre comovente o pôr do sol
por indigente ou berrante que seja,
mas ainda bem mais comovedor
é o brilho desesperado e derradeiro
que enferruja a planície
quando o último sol ficou submerso.
Dói-nos reter essa luz tensa e clara,
essa alucinação que impõe ao espaço
o medo unânime da sombra
e que pára de súbito
quando notamos como é falsa,
quando acabam os sonhos,
quando sabemos que sonhamos.

Jorge Luis Borges






Arde – parecem
murmurar – é lindo
arder e continuar vivo’.

Como esses dias que
gostavas que nunca passassem.
E passam.

E não acontece nada.


Alfonso Brezmes, Entardecer






sábado, 4 de fevereiro de 2017







Eu não sei de pássaros,
nem conheço a história do fogo.
Mas creio que devia ter asas a minha solidão.


Alejandra Pizarnick, Carência,
in Apologia da luz











Não voltarei à fonte dos teus flancos 
ao fogo espesso do verão 
a escorrer infatigável 
dos espelhos, não voltarei. 

Não voltarei ao leito breve 
onde quebrámos uma a uma 
todas as frágeis 
hastes do amor. 

Eis o outono: cresce a prumo. 
Anoitecidas águas 
em febre em fúria em fogo 
arrastam-me para o fundo. 

Eugénio de Andrade,  As frágeis hastes, in Obscuro Domínio




 

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017




...Puseram-se a contar pelos dedos os barcos
que faltariam para chegar o verão.

Nenhum deles falava. Tinham passado juntos
algumas noites; num quarto sem vista. E, embora
julgassem o contrário, não conheciam um do outro
muito mais do que isso.

Estavam ali sentados para ver se acontecia alguma coisa.
No verão
alguém viria forçosamente buscá-los.


Maria do Rosário Pedreira, in A casa e o cheiro dos livros



quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017




Construí uma casa no mar.
Com portal para o vento e um terraço onde
escuto o grito do albatroz ou recolho
o pólen das estrelas.
Plantei nas ondas uma árvore. São peixes
as pequeníssimas folhas desta árvore
que sinto crescer como um amigo.
Todos os móveis da casa são de água. Densa,
vermelha, filha de um vulcão,
ou leve, clara, irmã do linho.
Os tapetes têm a cor de antigos versos
que elogiam o mar.
Canções, odes, barcarolas. De um tempo
em que o sol emprenhava as corças
numa cama de folhas
e onde agora é deserto.
Nesta casa de água, escrevo.
E, para o teu poema, lanço a minha rede.
Nela vêm, doirados, ofegantes, vivos,
os cardumes de sílabas.

Joaquim Pessoa, Poema 22
in 
Antologia de GUARDAR O FOGO














Oh! quem me dera ser patrão de um barco
e ir de ilha em ilha abicar aos portos...

                                                    Raúl Brandão 





terça-feira, 31 de janeiro de 2017





Estou nu diante da água imóvel.
Deixei minha roupa no silêncio dos últimos ramos.

Isto era o destino:

chegar à margem e ter medo da quietude da água.



Antonio Gamoneda
Livro do Frio




domingo, 29 de janeiro de 2017






Eu sou feita de madeira
Madeira, matéria morta
Mas não há coisa no mundo
Mais viva do que uma porta.


Vinicius de Moraes, A porta




sexta-feira, 27 de janeiro de 2017






...E a vida está mais cheia de tão vazia...


Carlos Maria Trindade, Luz rosa poente





quinta-feira, 26 de janeiro de 2017





...é parecida contigo, solidão,
sejas lá tu quem fores...



Adolfo Cueto, Aluimento






















quarta-feira, 25 de janeiro de 2017






...a contradição,
esse ninho de pássaros ruidosos.

Parece que não se suportam, as contradições,

neste mundo nosso.
Mas tentamos
fugir-lhes
como os pássaros,
fugir, ficando.


Ángeles Mora, Contradições









terça-feira, 24 de janeiro de 2017





...tudo pronto para que a luz estremeça:
o terror da beleza, isso, o terror da beleza delicadíssima...

Herberto Helder




segunda-feira, 23 de janeiro de 2017




Agora vem
esta paz
como se fosse
uma visita há muito esperada.

Olho para ela,
ela para mim,
podíamos ficar assim
muitos anos.

Agora
a casa deixa-me
pôr sempre flores
para armar a alegria.

Aprendemos já a não sonhar a sede.

Por sorte,
lá fora,
outros são os que esperam
que um dia
lhes aconteça.


Valeria Pariso, Agora vem




domingo, 22 de janeiro de 2017






Seria preciso ter uma alegria de pássaro para com as migalhas da vida
e a mágoa de não ser um pássaro a contentar-se com elas...


Jorge de Sena





terça-feira, 17 de janeiro de 2017






Porque somos como as árvores, presos a um lugar, respirando através de uma lei calma e perene.


Herberto Helder