sábado, 4 de novembro de 2017






Aparentes senhores de um barco abandonado, 
nós olhamos, sem ver, a longínqua miragem... 
Aonde iremos ter? — Com frutos e pecado, 
se justifica, enflora, a secreta viagem! 

Agora sei que és tu quem me fora indicada. 
O resto passa, passa... alheio aos meus sentidos. 
— Desfeitos num rochedo ou salvos na enseada, 
a eternidade é nossa, em madeira esculpidos! 

David Mourão-Ferreira, in A Secreta Viagem





sexta-feira, 3 de novembro de 2017





Na minha juventude antes de ter saído
da casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que já tinha lido


Ruy Bello




terça-feira, 31 de outubro de 2017

domingo, 29 de outubro de 2017

sábado, 28 de outubro de 2017





esperava-te apenas. 

Tu precisavas de mudar de coração 
e de olhar 
depois de tocares a profunda 
zona do mar que meu peito te entregou. 
Precisavas de sair da água 
pura como uma gota erguida 
por uma onda nocturna. 


Pablo Neruda



quinta-feira, 26 de outubro de 2017




E se esta noite é uma noite do destino

bendita seja ela pois é condição da aurora.

Ruy Bello







Palavras que disseste e já não dizes,
palavras como um sol que me queimava,
olhos loucos de um vento que soprava
em olhos que eram meus, e mais felizes.

Palavras que disseste e que diziam
segredos que eram lentas madrugadas,
promessas imperfeitas, murmuradas
enquanto os nossos beijos permitiam.

Palavras que dizias, sem sentido,
sem as quereres, mas só porque eram elas
que traziam a calma das estrelas
à noite que assomava ao meu ouvido…

Palavras que não dizes, nem são tuas,
que morreram, que em ti já não existem
– que são minhas, só minhas, pois persistem
na memória que arrasto pelas ruas.


Pedro Tamen





terça-feira, 24 de outubro de 2017




Sobre as águas se recorta a branca escultura 
Quasi oriental quasi marinha 
Da torre aérea e branca
 E a manhã toda aberta 
Se torna irisada e divina

Sophia de Mello Breyner Andersen





segunda-feira, 23 de outubro de 2017





Todo aquele que abre um livro entra numa nuvem
ou para beber a água de um espelho
ou para se embriagar como um pássaro ingénuo.



António Ramos Rosa










Ao despertar
surpreendeu-me a imagem que ontem perdi.
A mesma árvore na manhã
e na levada
o pássaro que bebe 
o oiro do dia.
Estamos vivos, ninguém duvida,
o loureiro, a ave, a água
e eu, que observo e tenho sede.


Blanca Varela





domingo, 22 de outubro de 2017








Abre os olhos o dia e penetra
a Primavera antecipada.
Voa, tudo o que minhas mãos tocam,
está cheio de pássaros o mundo.

Octavio Paz

























sexta-feira, 20 de outubro de 2017



Há muito tempo, sim, não te escrevo.
Ficaram velhas todas as notícias.
Eu mesmo envelhecí: olha em relevo
estes sinais em mim, não das carícias
(tão leves) que fazias no meu rosto:
são golpes, são espinhos, são lembranças
da vida a teu menino, que a sol-posto
perde a sabedoria das crianças.


A falta que me fazes não é tanto
à hora de dormir, quando dizias
"Deus te abençoe", e a noite abria em sonho.

É quando, ao despertar, revejo a um canto
a noite acumulada de meus dias,
e sinto que estou vivo, e que não sonho.


Carlos Drummond de Andrade
Carta








                  De palavra em palavra                  
a noite sobe
aos ramos mais altos
e canta
o êxtase do dia.


Eugénio de Andrade





segunda-feira, 16 de outubro de 2017





Não haverá uma só coisa que não dê idéia

de uma nuvem. São as catedrais
de vasta pedra e bíblicos cristais
que o tempo renderá. É a Odisséia,
que muda como o mar. Algo há distinto
cada vez que a abrimos. O reflexo
de teu rosto já é outro no espelho
e o dia é um duvidoso labirinto.
Somos os que se vão. A numerosa
nuvem que se desfaz no poente
é nossa imagem. Incessantemente
a rosa se converte em outra rosa.
És nuvem, és mar, és olvido.
És também aquilo que está perdido.


Jorge Luís Borges
Nuvens I






São noites de insones as noites 
de incêndio.
Mais próxima a morte e
a vida, mais violenta nesta espera
nocturna que acende o desejo e descobre
promessas,
certezas que passam 
ardendo.
Solta-se o fogo no ar como um ar de festa
ou de batalha, de coisa que num instante
acontecem e logo a seguir não são nada.
Em poucas horas deixamos
para trás aquilo que fomos,
ficando no ar 
como que um ar de urgência,
de gestos aprendidos há pouco
e muito depressa esquecidos.
Ninguém dorme nunca
nas noites de incêndio.
Como amante impaciente,
a chama que cresce na noite
devora a mesma noite, 
lembrando-nos aquilo em que nos fomos
convertendo, fumo apenas.
E cinza.

Berta Piñán,
in Noites de incêndio




domingo, 15 de outubro de 2017



Brilha a luz duma janela.
Vejo-a, e sinto-me humano dos pés à cabeça.

Alberto Caeiro, heterónimo de Fernando Pessoa,
in A noite é muito escura





sábado, 14 de outubro de 2017



Não é o sono de que temo a falta
nem o sonho feroz nele contido
é a história do corpo percutindo
na fundura impiedosa do vazio


Gastão Cruz, Existência