quinta-feira, 30 de abril de 2020



E às dez horas da manhã,
no café do bairro,
dois velhos dizem "até amanhã",
como se nada fosse.
Fico subitamente triste,
como num dia que chegou ao fim
antes de ter começado.


Pedro Dias de Almeida








quarta-feira, 29 de abril de 2020



Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
  



Carlos Drummond de Andrade










sábado, 25 de abril de 2020




Será feliz, de certeza
o mundo em volta há-de parecer-lhe
subordinado, a salvo.
Tão seu, acima de tudo.
Sim, seu apenas, e o verão e o sol
julgará que lhe pertencem.



Raquel Lanseros






sexta-feira, 24 de abril de 2020



Passa uma faca sobre a vida. Tudo se apaga. A  tentação de parar ao lado de alguém é esta chuva branda, esta música de infância, testemunho a passar até onde pudermos, até desaparecermos ao longe, atrás dos rios e das montanhas, no vento dos transes dos navios, no clima dos campos de combate, onde já não são sombras quem nos espera, mas uma quarentena, a catedral, o elevador que desce até ao infinito glaciar da vida."


Ernesto Sampaio







quarta-feira, 22 de abril de 2020




Abrir-se-á aquela rua,
as pedras cantarão,
o coração baterá em sobressalto
como a água nas fontes -
será esta a voz
que subirá as tuas escadas.
As janelas saberão
o odor da pedra e do ar
matinal. Abrir-se-á uma porta.



Cesare Pavese




segunda-feira, 20 de abril de 2020



O que espreita no escuro
de nós mesmos nos afasta,
cheira e depois rejeita-nos
como um monstro horrível,
para podermos começar de novo.



O que cresce no cinzento
corrige os adeuses, descora-os
como sonata de Schubert
numa manhã de chuva,
para podermos voltar de novo.



O que habita no branco
apaga os poemas, espalha-os
como ondas de um lago adormecido
que uma mão de criança desperta,
para podermos escrever de novo.



Alfonso Brezmes






domingo, 19 de abril de 2020




...e da evanescência de tudo
edifica uma permanência,
cristal do tempo no papel.



Carlos Drummond de Andrade




sábado, 18 de abril de 2020



Lentamente, muito lentamente, o grupo de caracóis avançava por entre a erva. Iam tristes e sentiam que a tristeza se instalava como um modesto lastro que tornava pesadas as suas conchas.


Luis Sepúlveda




quarta-feira, 15 de abril de 2020


Por algum tempo, mesmo
que seja mínimo, as
coisas são perfeitas. 

(...)

Até que esse algum tempo
perfeito e mensurável
em desmedido tempo
se transforma.


Inês Lourenço




terça-feira, 14 de abril de 2020

sexta-feira, 10 de abril de 2020



Só há um modo verdadeiro de rezar:
estende o teu corpo ao longo do barco
que desce silencioso o canal
e deixa que as folhas mortas do bosque
te cubram


José Tolentino Mendonça




quinta-feira, 9 de abril de 2020



Na casa defronte de mim e dos meus sonhos,...



Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa





terça-feira, 7 de abril de 2020



o último raio de sol da tarde.

Dir-se-ia antes uma casa...



Manuel António Pina 




segunda-feira, 6 de abril de 2020



Se viesse cá um fotógrafo, reunisse a família no relvado junto à casa e tirasse uma fotografia, e a fotografia fosse parar a um livro que um homem abrisse daqui a cem anos, de quanto da nossa vida que se joga agora aqui poderia ele aperceber‑se? Fitá-lo-íamos em silêncio. 

Ove Knausgard




domingo, 5 de abril de 2020



Gosto das palavras que sabem a terra, a água, aos frutos de fogo do verão, aos barcos no vento; gosto das palavras lisas como seixos, rugosas como pão de centeio. Palavras que cheiram a feno e a poeira, a barro e a limão, a resina e a sol.



                                                                  Eugénio de Andrade





sexta-feira, 3 de abril de 2020



E se um poema opaco feito muro
te fizer sonhar noites em claro?
E se justo o poema mais obscuro
te resplandecer mais que o mais claro?


Antonio Cicero




quinta-feira, 2 de abril de 2020




Até que esse algum tempo
perfeito e mensurável
em desmedido tempo
se transforma.



Inês Lourenço




quarta-feira, 1 de abril de 2020




em noites escuras
sem lua nem estrelas
se observarmos o horizonte
aqui na beira do deserto
vê-se ao longe uma fogueirinha
não é uma roda de amigos
a beber e cantar
à volta do fogo/
sequer os tubos
da destilação do petróleo
expelindo gás ao vento do sul
a pequena fogueira
que se vê à distancia
é o inferno inexorável
a avançar
pela pele do mundo.



Aldo Luis Novelli