Abre os olhos o dia e penetra a Primavera antecipada. Voa, tudo o que minhas mãos tocam, está cheio de pássaros o mundo.
Octavio Paz
sexta-feira, 20 de outubro de 2017
Há muito tempo, sim, não te escrevo.
Ficaram velhas todas as notícias.
Eu mesmo envelhecí: olha em relevo
estes sinais em mim, não das carícias
(tão leves) que fazias no meu rosto:
são golpes, são espinhos, são lembranças
da vida a teu menino, que a sol-posto
perde a sabedoria das crianças.
A falta que me fazes não é tanto
à hora de dormir, quando dizias
"Deus te abençoe", e a noite abria em sonho.
É quando, ao despertar, revejo a um canto
a noite acumulada de meus dias,
e sinto que estou vivo, e que não sonho.
Carlos Drummond de Andrade
Carta
De palavra em palavra
a noite sobe
aos ramos mais altos
e canta
o êxtase do dia.
Eugénio de Andrade
segunda-feira, 16 de outubro de 2017
Não haverá uma só coisa que não dê idéia
de uma nuvem. São as catedrais
de vasta pedra e bíblicos cristais
que o tempo renderá. É a Odisséia,
que muda como o mar. Algo há distinto
cada vez que a abrimos. O reflexo
de teu rosto já é outro no espelho
e o dia é um duvidoso labirinto.
Somos os que se vão. A numerosa
nuvem que se desfaz no poente
é nossa imagem. Incessantemente
a rosa se converte em outra rosa.
És nuvem, és mar, és olvido.
És também aquilo que está perdido.
Jorge Luís Borges
Nuvens I
São noites de insones as noites
de incêndio.
Mais próxima a morte e
a vida, mais violenta nesta espera
nocturna que acende o desejo e descobre
promessas,
certezas que passam
ardendo.
Solta-se o fogo no ar como um ar de festa
ou de batalha, de coisa que num instante
acontecem e logo a seguir não são nada.
Em poucas horas deixamos
para trás aquilo que fomos,
ficando no ar
como que um ar de urgência,
de gestos aprendidos há pouco
e muito depressa esquecidos.
Ninguém dorme nunca
nas noites de incêndio.
Como amante impaciente,
a chama que cresce na noite
devora a mesma noite,
lembrando-nos aquilo em que nos fomos
convertendo, fumo apenas.
E cinza.
Berta Piñán,
in Noites de incêndio
domingo, 15 de outubro de 2017
Brilha a luz duma janela.
Vejo-a, e sinto-me humano dos pés à cabeça.
Alberto Caeiro, heterónimo de Fernando Pessoa,
in A noite é muito escura
sábado, 14 de outubro de 2017
Não é o sono de que temo a falta
nem o sonho feroz nele contido
é a história do corpo percutindo
na fundura impiedosa do vazio
Gastão Cruz, Existência
sexta-feira, 13 de outubro de 2017
Sentimos que não podemos continuar - mas continuamos.
Rui Pires Cabral
quarta-feira, 11 de outubro de 2017
O esquecimento não tem arte. Os momentos de esquecimento, conseguidos com grande custo, com comprimidos e amigos e livros e copos, pagam-se depois em condoídas lembranças a dobrar. Para esquecer é preciso deixar correr o coração, de lembrança em lembrança, na esperança de ele se cansar.
Miguel Esteves Cardoso, in 'Último Volume'
Se o tempo
fosse
uma flor, o seu
perfume
seria
esta luz
escorrendo
pelas escarpas
do dia.
Albano Martins
segunda-feira, 9 de outubro de 2017
E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes
encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes
ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos
E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos
David Mourão-Ferreira
domingo, 8 de outubro de 2017
E um olhar perdido é tão defícil de encontrar
como o é congregar ventos dispersos pelo mar.
Ruy Bello
Fossem meus os tecidos bordados dos céus,
Ornamentados com luz dourada e prateada,
Os azuis e negros e pálidos tecidos
Da noite, da luz e da meia-luz,
Os estenderia sob os teus pés.
Mas eu, sendo pobre, tenho apenas os meus sonhos.
Eu estendi meus sonhos sob os teus pés
Caminha suavemente, pois caminhas sobre meus sonhos.
William Butler Yeats
Tecidos dos céus
sexta-feira, 6 de outubro de 2017
Vê como de súbito o céu se fecha
sobre dunas e barcos,
e cada um de nós se volta e fixa
os olhos um no outro,
e como deles devagar escorre
a última luz sobre as areias.
Que diremos ainda? Serão palavras,
isto que aflora aos lábios?
Palavras?, este rumor tão leve
que ouvimos o dia desprender-se?
Palavras, ou luz ainda?
Palavras, não. Quem as sabia?
Foi apenas lembrança doutra luz.
Nem luz seria, apenas outro olhar.
Eugénio de Andrade
segunda-feira, 2 de outubro de 2017
Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave
o atravessar trespassada por um grito marítimo
e o pão for invadido pelas ondas —
seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes.
Ele — imagem vertiginosa e alta de um certo pensamento