quarta-feira, 9 de novembro de 2016





No barco sem ninguém, anónimo e vazio, 

ficámos nós os dois, parados, de mão dada... 
Como podem só dois governar um navio? 
Melhor é desistir e não fazermos nada! 

Sem um gesto sequer, de súbito esculpidos, 
tornamo-nos reais, e de madeira, à proa... 
Que figuras de lenda! Olhos vagos, perdidos... 
Por entre nossas mãos, o verde mar se escoa... 

Aparentes senhores de um barco abandonado, 
nós olhamos, sem ver, a longínqua miragem... 
Aonde iremos ter? — Com frutos e pecado, 
se justifica, enflora, a secreta viagem! 

Agora sei que és tu quem me fora indicada. 
O resto passa, passa... alheio aos meus sentidos. 
— Desfeitos num rochedo ou salvos na enseada, 
a eternidade é nossa, em madeira esculpidos! 

David Mourão-Ferreira, A Secreta Viagem





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