no ar que nos consome e que nós respiramos os dois juntos
António Gancho
sábado, 23 de dezembro de 2017
Aproxima a boca da nascente:
não te importes
se for silêncio só
o que te chega aos ouvidos:
é música
ainda. Tenta uma vez mais
levantar a mão até ao bafo
da primeira estrela,
a pupila atenta
ao rumor de cada sílaba:
não tens outro país, não tens
outro céu.
Com a boca, com os olhos,
como os dedos
procura tocar a terra cheia
do teu coração.
Outra vez.
Eugénio de Andrade
sexta-feira, 22 de dezembro de 2017
Partida
quarta-feira, 20 de dezembro de 2017
Meu o provisório olhar
sobre este rio
o fascínio consentido das margens
sitiando a distância
José Tolentino de Mendonça
terça-feira, 19 de dezembro de 2017
No silêncio da terra. Onde ser é estar.
A sombra se inclina.
Habito dentro da grande pedra de água e sol.
Respiro sem o saber, respiro a terra.
Um intervalo de suavidade ardente e longa.
Sem adormecer no sono verde.
Afundo-me, sereno,
flor ou folha sobre folha abrindo-se,
respirando-me, flectindo-me
no interior aberto.
Não sei se principio.
Um rosto se desfaz, um sabor ao fundo
da água ou da terra,
o fogo único consumindo em ar.
António Ramos Rosa
sábado, 16 de dezembro de 2017
Uma névoa de Outono o ar raro vela,
Cores de meia-cor pairam no céu.
O que indistintamente se revela,
Árvores, casas, montes, nada é meu.
Sim, vejo-o, e pela vista sou seu dono.
Sim, sinto-o eu pelo coração, o como.
Mas entre mim e ver há um grande sono.
De sentir é só a janela a que eu assomo.
Amanhã, se estiver um dia igual,
Mas se for outro, porque é amanhã,
Terei outra verdade, universal,
E será como esta [...]
Fernando Pessoa
dói mas mantém-nos vivos
o perfume silvestre da recordação
morder-nos de quando em quando
o coração
Rocío Wittib
quinta-feira, 14 de dezembro de 2017
Na casa defronte de mim e dos meus sonhos,
Que felicidade há sempre!
Moram ali pessoas que desconheço, que já vi mas não vi.
São felizes, porque não sou eu.
Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa
quarta-feira, 13 de dezembro de 2017
Perdi os meus fantásticos castelos Como névoa distante que se esfuma...
Quis vencer, quis lutar, quis defendê-los:
Quebrei as minhas lanças uma a uma! Florbela Espanca
segunda-feira, 11 de dezembro de 2017
Sim, há fundo.
Mas é o único lugar onde começa o outro lado,
simétrico deste,
talvez este repetido,
talvez este e seu duplo,
talvez este.
Roberto Juarrroz
domingo, 10 de dezembro de 2017
Não haverá uma só coisa que não dê idéia
de uma nuvem. O são as catedrais
de vasta pedra e bíblicos cristais
que o tempo renderá. O é a Odisséia,
que muda como o mar. Algo há distinto
cada vez que a abrimos. O reflexo
de teu rosto já é outro no espelho
e o dia é um duvidoso labirinto.
Somos os que se vão. A numerosa
nuvem que se desfaz no poente
é nossa imagem. Incessantemente
a rosa se converte em outra rosa.
És nuvem, és mar, és olvido.
És também aquilo que está perdido.
Jorge Luis Borges
Os comboios sempre me fizeram sonhar. Os comboios? Quase tudo me faz sonhar, que esquisito. Às vezes parece-me que sou uma nuvem com raízes, sempre a partir e a ficar. Não abandono os sítios de que fui embora, coloquei a alma, escondida, sob cada objecto.
António Lobo Antunes
quarta-feira, 6 de dezembro de 2017
Assim é o amor:
mortal e navegável. Eugénio de Andrade
terça-feira, 5 de dezembro de 2017
Meu desejo corre a ti com velas enfunadas…
Podes dar-lhe um porto, sem nenhum receio:
ele não traz âncora...
Guimarães Rosa
quarta-feira, 29 de novembro de 2017
a sabedoria da criança é não saber que morre
a criança morre na adolescência
Se foste criança diz-me a cor do teu país
Eu te digo que o meu era da cor do bibe
e tinha o tamanho de um pau de giz
Naquele tempo tudo acontecia pela primeira vez
Ainda hoje trago os cheiros no nariz
Senhor que a minha vida seja permitir a infância
embora nunca mais eu saiba como ela se diz
Ruy Belo, in Homem de Palavra[s]
terça-feira, 28 de novembro de 2017
Hereditárias de sol,
elas desabrocham, as palavras,
um doce fruto escorrendo pela voz,
o rumor leve, adolescente,
o lento fiar do vento
nas suas conchas naufragadas.
João de Mancelos
sábado, 25 de novembro de 2017
7
Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.
Mário de Sá-Carneiro
quinta-feira, 23 de novembro de 2017
Também elas envelheceram, as escadas,
também, como eu, desabitadas.
Anoiteceu, ao longe afastam-se passos, provavelmente os meus,
e, à nossa volta, os nossos corpos desvanecem-se como terras estrangeiras